Estuprado em clínica de reabilitação, homem dá depoimento sobre cura gay
Estuprado em clínica de reabilitação, auxiliar de classe Eduardo*, 31 anos, de Osasco – SP, pediu ajuda dos pais, em 2011, para conseguir tratar a depressão e largar o álcool e na cocaína, mas acabou em clínicas que acreditavam que ele tinha estes problemas por ser homossexual e estar possuído por espíritos. O rapaz conta seu depoimento ao site Universa. Ele conta que viu roupas de uma pessoa travesti serem queimadas, foi ameaçado de ser linchado por não querer “deixar a viadagem” e foi obrigado por outros internos a prestar “favores sexuais”. Pacientes que recebiam o “cargo” de monitores obrigavam-no a fazer sexo oral neles para evitar delações desnecessárias.
Leia depoimento:
“A minha primeira internação foi em 2011. Naquela época, eu não havia assumido a minha homossexualidade, mas a minha família desconfiava. Ninguém concordava com a minha orientação, uma parte por ser evangélica, outra por achar que era uma vergonha.
Eu estava passando por um momento de depressão devido à homofobia que sofria dentro de casa, por isso comecei a beber e a usar cocaína de forma abusiva. Pedi ajuda para minha família para lidar com estes problemas. A gente não conhecia nenhuma ajuda terapêutica. Minha irmã descobriu, então, uma clínica na igreja que ela frequentava. O pastor, dono do lugar, dizia que tratava tanto a homossexualidade quanto a dependência química. Era um pacote que ele vendia.
Um dia, eu cheguei em casa do trabalho e meu pai e meu irmão me arrastaram para o Centro de Atenção Psicossocial (Caps). Lá, eu fui sedado. Acordei dentro de uma comunidade terapêutica em Caucaia do Alto, em Cotia (SP). Estava em um quarto com 60 pessoas. Todo mundo amontoado. O cômodo tinha apenas uma janela, que estava coberta por uma chapa furada com prego e uma porta com uma grade, como a de uma cadeia. No fundo, havia três banheiros sem porta, então não havia privacidade. Eles diziam que era para evitar suicídio e sexo. Era um ambiente imundo.
A gente só saía do quarto para ir ao culto, que era das 7h ao meio-dia, e para as refeições. Eles davam muito chá para a gente falando que era para não ficarmos com tesão, porque, segundo eles, a bebida era broxante. Eles já estavam lidando com pessoas que eles achavam que teriam relações homoafetivas. Na primeira semana, eles começaram a falar sobre a minha homossexualidade. A gente não tinha consulta com ninguém, era só no culto. Lá, eles faziam aqueles discursos homofóbicos. Eles falavam que a gente estava com o “espírito da pomba-gira” e faziam a gente subir no púlpito para orarem por nós.
Nós tínhamos monitores, que também eram internos. Se eles viam um homossexual conversando com outra pessoa, eles mandavam parar. Eles falavam que a gente podia estar falando ‘putaria’. Tive que fazer ‘favores sexuais’ para monitores, como, por exemplo, sexo oral. Fazia em troca de privilégios como dormir um pouco mais, não ser delatado para o pastor. Teve um dia que tive que fazer sexo oral porque eles estavam assistindo a um filme pornô de madrugada e eu vi. Para não me incriminarem, eu tive que ceder.
Eles isolavam os homossexuais. Mas os internos procuravam a gente para fazer sexo. Os monitores ficavam assediando psicológica e sexualmente a gente e os pastores ficavam fazendo a tortura psicológica, dizendo que estávamos destruindo a nossa família, que nossos pais estavam deprimidos e acabados por sermos gays.
Esse isolamento, no entanto, fez a gente se fortalecer. Nós dávamos apoio uns aos outros. Porém, ainda assim, fiquei sabendo de companheiros meus que se suicidaram depois de sair da clínica ou que voltaram para as drogas.
Eu vi um homossexual sendo espancado por ter tentado fugir. Quebraram os dentes e o dedo dele. Um dia, um interno soltou gases em um culto, 11 pessoas espancaram este cara a ponto de ele ficar desfigurado. Os monitores tinham um pedaço de pau escrito Chico Doce, e nos ameaçavam com isso. Havia sessões de correção, que, na realidade, era uma surra corretiva.
Uma vez eles internaram uma travesti. Logo que ela chegou, queimaram todas as roupas femininas dela na frente de todo mundo, na porta do quarto, para todo mundo ver. Fizeram corrente de oração para ela, enquanto queimavam seus pertences. Foi surreal.
Uma vez por mês, eu recebia a visita dos meus familiares. Uma vez por semana, eu tinha direito a uma ligação monitorada. Eu falava para a minha família o que acontecia, mas eles eram orientados a não acreditarem em mim. Depois de nove meses na clínica, eu fiz um escândalo em uma visita pedindo para sair. Um capataz, que era um dos donos da clínica, me pegou e me levou para um quarto e me deu um tapa na cara, dizendo para eu parar. Nisso, o meu pai viu o que ele tinha feito e, por isso, me tirou de lá.
Saí completamente arrasado. Em choque com tudo o que tinha acontecido. Perdido, sem saber o que fazer. Comecei a ficar muito tempo na rua e acabei começando a usar crack. Meses depois, eu pedi ajuda novamente para a minha família por causa da droga. Nos anos seguintes, eu fui internado mais três em clínicas para dependência química. Na última internação, eu fui para uma comunidade terapêutica em São Roque (SP), em 2014. Lá foi outro inferno. Tinha um interno que se dizia terapeuta que, todo dia pela manhã e à noite, fazia os 40 internos orarem apontando a Bíblia para mim, dizendo que aquele espírito que me tornou homossexual deveria sair.
Nessa clínica, também sofri agressões físicas. Eu saí porque eu comecei a protestar. Um dia, o ‘terapeuta’ e outros internos que faziam a vigília ameaçaram me linchar por estar com o diabo dentro do corpo. Eu me tranquei dentro do escritório do dono e liguei para a minha família. Eu deixei o cômodo depois que a minha família chegou lá.
Mas a minha família não acreditava no que eu contava. Não sei se até hoje eles acreditam nas coisas que eu passei. Eles sentem muita culpa por tudo o que aconteceu. Depois das internações, comecei a ter um diálogo com a minha família sobre a minha homossexualidade. Arrumei um emprego em que os donos eram um casal gay, então eles começaram a ter mais contato e ficaram mais abertos.
A última clínica em que eu fui internado, em São Roque (SP), esteve no dossiê do Conselho Regional de Psicologia e descobriram havia maus tratos e violação de direitos humanos. O dono da primeira clínica chegou a ser processado pelo Ministério Público e teve as clínicas fechadas, mas eu sei que ele já tem outras abertas. Não processo o dono da primeira clínica, em Caucaia do Alto, porque tenho medo, já que ele tem uma igreja no bairro ao lado, envolvimento com o crime organizado e ameaçou a minha família quando eles me tiraram da clínica.”
De acordo com o artigo 203 da lei de número 12.015, de 2009, “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” é considerado estupro e pode render pena de seis a dez anos de prisão.
Foto: arquivo pessoal